Como no caso da tatuagem, a origem exata da escarificação é desconhecida. Diversos povos ao redor do mundo têm usado seus corpos como telas por motivos variados há milhares de anos. As marcas definitivas são inscrições culturais na pele que demonstram como são profundos os laços entre o individual e o social.
Entre as diferentes narrações passadas de geração para geração, uma das mais difundidas é a de que a escarificação começou a ser feita quando os Reis da África começaram a invadir outras tribos em busca de conquistar novos territórios. Eles desenvolveram seus próprios métodos de escarificação para marcar os membros de sua família selecionados para governarem a terra tomada, assim, quando retornassem aos territórios e vissem as marcas, saberiam que já controlavam o local. Assim, a prática também se disseminou como uma forma de membros de uma família localizarem parentes que tivessem seguido para outros territórios. Algumas das tribos que adotaram a escarificação no norte de Gana são os Gonjas, Naumbas, Dagombas, Frafras e Mamprusis.
Escarificações são feitas por motivos estéticos, religiosos e sociais, transmitindo mensagens complexas a respeito da identidade do indivíduo. Podem enfatizar os papéis que exerce dentro de um grupo, seu status social, político ou religioso, a qual tribo pertence e por quais experiências o sujeito passou.
Aqueles que não passam pelos rituais e não recebem as marcas costumam ser excluídos do grupo, uma vez que não terão as características necessárias para serem vistos como agentes da sociedade em questão, como representantes legítimos da tribo.
Nesse caso, as cicatrizes são consideradas marcas da civilização, distinguindo os seres humanos dos animais. Paradoxalmente, algumas das marcas são feitas justamente em alusão a características animais que os indivíduos admiravam e que acreditavam obter por meio do ritual da escarificação.
Na África Ocidental, um grande número de tribos usam a escarificação para marcar momentos significativos na vida de homens e mulheres, como a passagem pela puberdade e o casamento. O procedimento faz parte de um ritual de provação que indica que a pessoa está apta a seguir adiante em sua vida pessoal e dentro da sociedade em que se encontra.
Na região de Benin as cicatrizes se difundiram no século XVIII como maneira de distinguir os guerreiros das tribos em conflito, além de permitir a identificação dos mortos após a batalha, a fim de que recebessem os ritos funerários adequados.
Algumas marcas são usadas para distinguir determinadas crenças, como é o caso dos seguidores de Ogou, o Deus do Ferro, no sul de Benin, que apresentam grandes cicatrizes cruzadas e em alto relevo por diversas partes do corpo.
As escarificações na barriga das mulheres, por exemplo, denotam seu desejo de se tornar mãe; sua capacidade de tolerar a dor dos cortes indicaria maturidade emocional para se carregar uma criança no ventre. Normalmente, os primeiros cortes são feitos ainda na puberdade, enfatizando a importância da maternidade, sendo adicionados novos desenhos na adolescência e na idade adulta.
No distrito de Atacora, no noroeste de Benin, jovens mulheres pedem para serem marcadas com puuwari (no idioma waama, puuku = barriga e warii = escrita) quando estão apaixonadas, mostrando para todos que ela tem a intenção de se casar. Essas cicatrizes cobrem o corpo e a barriga com contornos formados por pequenos cortes verticais e horizontais, que levam muito tempo para serem feitos quando o desenho está completo, é a indicação, para a mãe da garota, de que ela está pronta para o casamento.
Na tribo Bétamaribè, as noivas são submetidas a um ritual adicional, antes de engravidarem pela primeira vez: são feitas cicatrizes verticais em suas nádegas para garantir que não haja complicações durante a gravidez e o parto.
Há os cortes feitos em honra aos deuses ou para agradecê-los por uma benção ou favor. Um interessante exemplo é o caso das crianças abikou (abi = nascer; kou = morte), ou seja, as que estariam destinadas a morrer no nascimento, ao sul de Benin e na Nigéria. Aquelas mulheres que tivessem sofrido vários abortos prematuros poderiam fazer um apelo aos deuses para que a ajudassem a ter uma gravidez bem sucedida; se o filho nascesse saudável e sem problemas, a história de seus irmãos mortos antes do nascimento seria gravada em seu rosto na forma de uma linha horizontal em sua bochecha esquerda. Se, em vez de pedir aos deuses a mulher procurasse a ajuda de uma “bruxa-curandeira”, a cicatriz a ser feita na criança seria a marca tribal da “bruxa”, identificando-a como uma yoombo (algo como “criança comprada”).
Outra função comum da escarificação estaria nas práticas de cura; a cicatriz ajudaria o indivíduo a deixar de ser uma vítima e se tornar um sobrevivente. Pesquisas antropológicas sugerem que, antigamente, algumas cicatrizes se relacionavam também à resistência da pessoa a determinadas doenças, principalmente sexuais. Homens e mulheres que carregassem as marcas indicativas de sua resistência a certos patógenos eram vistos como bons parceiros.
Mulheres saudáveis são marcadas preferencialmente nos seios e na região do estômago, como indicativos de juventude e fertilidade. Homens são marcados em locais que representam coragem, maturidade e força física, como nos ombros, peito, braços e no rosto.
Contudo, devido à associação com os ritos curandeiros que envolviam, por vezes, a escarificação para que a criança pudesse se livrar de certas doenças, a ostentação de cicatrizes poderia evitar que o indivíduo fosse capturado por comerciantes de escravos que em geral consideravam que as pessoas marcadas apresentavam saúde frágil.
A escolha pelo corte para se formar cicatrizes em alto relevo se deve à pouca visibilidade da tinta preta na pele escura. A beleza e a complexidade dos desenhos dependerá tanto das habilidades do artista quanto da tolerância à dor daquele que está sendo cortado. Durante o processo, a liberação de endorfina pelo corpo pode inclusive levar a um estado de euforia, possibilitando que o indivíduo suporte uma seção maior de cortes que resultará em um desenho mais elaborado e numa maior admiração pelos demais membros da tribo.
As técnicas utilizadas também variam de acordo com a tribo. Antigamente, os procedimentos eram realizados com espinhos, pedras bastante afiadas ou ossos de peixes, que com o tempo foram substituídos por lâminas.
Em alguns locais são esfregadas cinzas obtidas a partir de fuligem ou mesmo da queima dos corpos dos falecidos nas feridas para dar o efeito de uma tatuagem e para ajudar na cicatrização. Quando as cinzas são colocadas por baixo da pele da ferida aberta, como se fossem feitas inserções, ativam o processo de cicatrização por meio da expulsão das cinzas pela própria pele e levam à formação de altas queloides.
Existem também as cicatrizes obtidas por meio de queimaduras que conhecemos como brandings , em que a madeira quente é pressionada na pele; essa técnica é usada em tribos na Etiópia como as dos Menits e Surmas.
Até hoje habitantes da cidade de Ouidah, ao sul de Benin, ainda praticam as escarificações que chamam de “duas-vezes-cinco”: são dois pares de cicatrizes verticais no centro de cada bochecha, um par entre os olhos e um par de cada lado das têmporas. Segundo a lenda, essa prática foi feita pela primeira vez em 1717 pelo rei Kpasse. Ameaçado por uma rebelião liderada por Ghézo e seus guerreiros, Kpasse se encontrava em minoria e correu para uma floresta infestada de pítons. Em vez de atacarem o rei, as cobras o ajudaram a contra-atacar e a render seus inimigos. Desde então, todos os descendentes de Kpasse ostentam as mesmas cicatrizes em honra às pítons, animais aos quais se dedicam vários festivais.
No noroeste de Benin e nordeste de Togo algumas tribos têm tanto orgulho de suas cicatrizes que os desenhos são gravados também nas paredes de suas casas, a fim de identificar quem são os moradores.
O futuro da escarificação, como o de diversas outras práticas tribais, parece ser o desaparecimento gradativo. Muitas mães atualmente escolhem não marcar seus filhos para que eles não se destaquem na multidão e não sejam discriminados nas cidades, principalmente quando buscarem trabalho. A reação dos colonizadores europeus e a ação de grupos religiosos, em especial os cristãos, buscando doutrinar os “bárbaros” também levou a uma visão negativa da prática, que acabou proibida em alguns países.
Obviamente, não se pode ignorar o problema da falta de higiene com que se fazem as cicatrizes, levando a infecções e até à morte. O vírus do HIV e o tétano se tornaram grandes ameaças para a população africana e grupos de prevenção tentam conscientizar a todos sobre os riscos da escarificação para a saúde.
Autoria de Thamiris Vicente no finado Tattoo Tatuagem
Fontes:
http://www.cvltnation.com/tribal-scarification/
http://www.travelblog.org/Africa/Ghana/Northern/Tamale/blog-243868.html
Cultura: fotógrafa da Costa do Marfim faz exibição sobre a tradição da escarificação